quinta-feira, 11 de dezembro de 2014
A palestra de Vandana Shiva no Sydney Peace Prize 2010
Vandana Shiva : Sydney Peace Prize Talk from WisdomKeepers Productions on Vimeo.
Vandana Shiva nasceu ao pé dos Himalaias. É uma ativista ambiental, ecofeminista, escritora e filósofa da ciência conhecida internacionalmente pela luta ativa contra o modelo neoliberal de globalização e em favor dos direitos dos povos. Shiva ganhou o Prémio Nobel da Paz Alternativo 1993 e é a diretora da Fundação de Pesquisa para a Ciência, Tecnologia e Ecologia. Também é Membro do Conselho Nacional do Meio Ambiente indiano e lidera a fundação Navdanya para a defesa da biodiversidade e o conhecimento indígena [WIKIPEDIA].
O presente texto está baseado na apaixonada palestra de Vandana Shiva em 2010 ao receber o City of Sydney Peace Prize [SHIVA] que depois serviu de base para o livro [SHIVABOOK].
ENQUADRAMENTO DO DISCURSO
Para Shiva, a defesa dos direitos da Terra tem sido uma inspiração [05:00 - 06:00, SHIVA] porque os direitos das pessoas e os direitos da natureza estão inter-relacionados e igualmente ameaçados [42:00 - 44:00, SHIVA] e esta é a ideia vertebral de toda a conferência.
O enquadramento do discurso em relação à escada de [HOPWOOD] é simples: Shiva é transformacionista porque acha que a base dos problemas está nas raízes das estruturas socioeconómicas e das relações de poder. Uma simples reforma não seria suficiente para evitar o colapso. Shiva tenta não usar no seu discurso o termo desenvolvimento sustentável e prefere falar em sustentabilidade talvez para enfatizar o seu decrescentismo, é dizer, a incompatibilidade de um desenvolvimento baseado no crescimento contínuo e sustentabilidade.
Dentro do transformacionismo, Shiva é fundamentalmente ecofeminista traçando uma clara relação entre a degradação ambiental e o patriarcado [16:00-20:00, SHIVA]. A igualdade de género é um ponto essencial referido em [BAKER] [BRUNDTLAND] e no caso de [BAKER] adianta-se que existem posições como a de Shiva em que se considera a diferente relação com o ambiente de homens e mulheres.
Apesar de que a vinculação entre justiça social e justiça ambiental é insistente em toda a conferência, o que podia servir para classificar o pensamento de Shiva como ecosocialista, existem mais elementos para ser classificada dentro do econacionalismo Bramam: a insistência no retorno à maneira de fazer tradicional e nativa, o indigenismo e a ausência de crítica ao sistema tradicional de castas na Índia.
A imensa maioria do texto pode vir a ser enquadrado na sustentabilidade forte e ecocéntrica [BAKER] pois o ambiente é visto como algo frágil e sagrado que pode sofrer graves alterações irreversíveis como consequência da acumulação de pressões antrópicas mesmo que sejam pequenas. Também existem em Shiva alguns traços de sustentabilidade fraca. Shiva afirma, por exemplo, que se os danos ambientais e sociais foram internalizados, muitas atividades como a minaria não seriam rendíveis e não poderiam ser apresentados como desenvolvimento. [10:00-11:00 e 14:00-15:00 SHIVA]. Poder-se-ia dizer que Shiva não veria com maus olhos o clássico quem mais polue mais paga, se bem a ativista espera que os custos ambientais imputados quase sempre tornem inviáveis as atividades mais nocivas.
A GUERRA DO CAPITALISMO GLOBAL
A ativista faz uma crítica severa ao capitalismo global e defende que cada dimensão da crise ecológica é o resultado de uma guerra permanente contra a Terra porque as bases de este modelo económico não respeitam limites no sentido físico de [MEADOWS] nem no sentido ético [06:00-07:00, SHIVA]. A ideia de que estamos em uma situação bélica já aparecera em [MARQUES] mas mais limitada à praxe política.
As características essenciais de este capitalismo ao seu ver seriam a concentração económica [06:00-07:00, SHIVA] e o supermercado global em que tudo está à venda. [07:00-08:00, SHIVA]. Os recursos são privatizados, mercantilizados e apropriados por corporações [08:00-09:00, SHIVA]. Mesmo há uma tentativa de mercantilizar a biodiversidade remanescente [38:00 - 40:00, SHIVA]. E se isto não for possível, as guerras e a militarização serão o instrumento essencial de controlo sobre esses recursos dos pobres pelos poderosos [09:00-10:00, SHIVA]. Perante esta guerra Shiva é partidária de uma resistência pacífica, da não-violência (ahimsa), o que a coloca próxima das ideias de Gandhi e da luta contra o apartheid (hoje falariamos em ecoapartheid).
O ROLE DOS ESTADOS UNIDOS
Vandana Shiva coincide na sua visão negativa da política ambiental norte-americana com Soromenho-Marques [MARQUES] no que qualifica de bioimperialismo [38:00 - 40:00, SHIVA].
As patentes dos EUA sobre a vida estão a tratar a vida como se for uma nova invenção. É o que Shiva batiza como a biopirataria das corporações. A recuperação do bem comum é vital, porque a maioria dos pobres vive dos comuns [36:00 - 38:00, SHIVA].
Além disso, Shiva refere como os acordos agrícolas com os EUA incluem a apropriação de terras em África com a escusa de um objetivo típico do desenvolvimento sustentável [BRUNDTLAND] [BAKER] que é segurança alimentar [28:00 - 29:00, SHIVA].
AGRICULTURA ECOLÓGICA VS AGRICULTURA INDUSTRIAL
Shiva defende sobre a experiência na fundação Navdanya que a agricultura ecológica baseada na biodiversidade e sem tóxicos é capaz de produzir mais que a agricultura industrial e de maneira mais segura [38:00 - 40:00, SHIVA]. Esta asseveração foi motivo de controvérsia com Mark Lynas de Cornell University e outros. A sua opinião sobre a Revolução Verde é que foi um fracasso para a Índia, apesar do fato de que a própria ativista tacitamente admite que em 1960 Índia importava alimentos e hoje a Índia é a que exporta alimentos ao mundo [24:00-26:00, SHIVA].
A agricultura ecológica, diz, precisaria menos terras e agua e refere o problema da apropriação de Terras na África [29:00 - 30:00, SHIVA]. Além da apropriação de terras Shiva refere três problemas já referidos como problemas do desenvolvimento em [BRUNDTLAND] que liga à extensão da Revolução Verde: a monocultura [26:00 - 28:00, SHIVA], a importação de sementes [28:00 - 29:00, SHIVA] e a maior emissão de gases relacionados com o aquecimento global [36:00 - 38:00, SHIVA]. A autora apresenta a segunda Revolução Verde baseada na engenharia genética como ainda mais violenta [30:00 - 32:00, SHIVA]. Já em 2010 alguns autores no The Ecologist e no Humboldt Forum for Food and Agriculture falavam na terceira Revolução Verde, a da agricultura urbana e em vertical.
A combinação de sementes e produtos químicos caros e a pressão em nome de mais produção de alimentos seriam armadilhas mortais que podem ter sido responsáveis pelo suicídio de agricultores na Índia [36:00 - 38:00, SHIVA] se bem este também foi um ponto de grande controvérsia ainda não demonstrado.
AS MULHERES
Vandana Shiva desempenha um papel importante no movimento global ecofeminista. Ela faz uma dicotomia entre a maneira de pensar masculina e feminina para justificar o ecofeminismo. A filosofia mecanicista da Revolução Industrial era masculina e todo o conhecimento holístico (interconectividade e mutualidade) seria feminino. [18:00-20:00, SHIVA].
A obsessão com o crescimento e a dominação vem fundamentalmente dos homens (em masculino) que controlam o poder e capital [16:00-18:00, SHIVA] enquanto a maioria das pessoas pobres afectadas pela perda de biodiversidade são mulheres. [36:00 - 38:00, SHIVA]. Colocar os humanos contra a Terra é um legado da mentalidade patriarcal de Revolução Industrial. [40:00 - 42:00, SHIVA].
O ponto mais controvertido desta argumentação surge quando, ao tempo que Shiva alega que um sistema focado na mulher mudaria positivamente o sistema atual, também suporta o poder das mulheres para manter a vida tradicional e reconta o seu apoio ao movimento Chipko nos Himalaias como exemplo de mulheres que tomam o controlo em uma tentativa de preservar seu modo de vida tradicional [05:00-06:00, SHIVA].
OS INDÍGENAS
Para a ativista as comunidades indígenas seriam o modelo a seguir de autossuficiência e a conservação da biodiversidade local. Ambos são objetivos ideais, de topo de tabela de sustentabilidade, em [BAKER]. A perceção da maioria dos povos indígenas é que a natureza é uma espécie de deusa. Uma cultura consciente da ideia de uma Terra como mãe sagrada não poderia desencadear uma guerra contra Gaia em nome do progresso [20:00-22:00, SHIVA].
Assim, como exemplos da bondade do indigenismo chagado ao poder para melhor defender os direitos da natureza, Shiva refere os governos bolivarianos de Equador e Bolívia [42:00 - 44:00, SHIVA], que são claramente movimentos do Sul na escada de [HOPWOOD].
MUDANÇA DE COSMOVISÃO
Para a autora como para [MARQUES] seremos capazes de reinventar a cidadania para as tarefas da sustentabilidade mas é preciso desfazer alguma dicotomia. De todas as dicotomias referidas por [MARQUES] a dilaceração entre homem e cidadão é o principal ponto de partida. A visão do mundo está fortemente relacionada com a própria visão que o humano tem de si próprio, como máquina (mecanicista) ou como cidadãos da Terra. [42:00 - 44:00, SHIVA]. A atual cosmovisão definiria os recursos e as espécies como inimigos a dominar [07:00-08:00, SHIVA]. Não é por acaso, diz, que o petróleo está tornando-se na metáfora organizadora de todos os recursos [09:00-10:00, SHIVA].
É preciso, diz, nos livrar de velhos paradigmas que claramente não estão a funcionar. Um dos pressupostos falsos é o crescimento, que só mede a comoditização, não pode medir os serviços que os ecossistemas fornecem. Precisaríamos criar medidas além do dinheiro. Na linha insinuada por [ZIDANSEK], Butão livrou-se da medida do PIB e mede a felicidade como principal indicador nacional. [40:00 - 42:00, SHIVA]. Agora bem, ideias como a pobreza relativa ou culturalmente percebida também podem ter a consequência não intencional de justificar os cortes salariais.
Se [BRUNDTLAD] é otimista quanto à tecnologia e [MARQUES] é um partidário com algum ceticismo da tecnologia, aqui a tecnologia não é vista nunca como solução pela autora senão como um instrumento de guerra que destrói o saber-fazer tradicional [07:00-08:00, SHIVA].
DA PARTICIPACÃO LOCAL À ACÇÃO GLOBAL
Ao final da conferência, Shiva desafia-nos com uma escolha: o caminho da maximização do lucro empresarial (Holoceno) ou a democracia da Terra (Antropoceno), sendo este último um imperativo para a sobrevivência da espécie humana. Novamente antropocentrismo ou ecocentrismo [BAKER]. Como [MARQUES], Shiva também visa impelir à ação porque a crise do clima é hoje [36:00 - 38:00, SHIVA]. Nenhum lugar seria seguro hoje [06:00-07:00, SHIVA]. As imagens de destruição da Terra estão por toda a parte [09:00-10:00, SHIVA]. Shiva conta como as tribos das colinas de Niyamgiri (Índia) tornaram uma vitória popular contra a minaria de bauxita em um movimento global [12:00-13:00, SHIVA]. Portanto, devemos espertar da mesma maneira os nossos deveres e direitos como cidadãos da Terra [40:00 - 42:00, SHIVA]. Em peral, o envolvimento ativo dos cidadãos é um objetivo necessário para o desenvolvimento sustentável assinalado em [BRUNDTLAND] e reforçado na [AGENDA21].
ALGUMAS ÚLTIMAS PRECISÕES
Como ativista radical, Shiva não tem medo de enfrentar os gigantes corporativos e imagina um mundo que poderia ser sustentável; um mundo no qual a segurança alimentar, a justiça e a paz estão todos alinhados. Shiva não pretende modificar o processo de globalização, está contra a globalização. No discurso de Shiva, em geral, não há espaço para os termos médios.
Os argumentos de Shiva estão localizados na Índia, país que é visto como um beneficiário da globalização económica se bem Shiva ponta que esse crescimento se baseia em uma espécie de guerra para o benefício das corporações globais. A autora extrapola muito a partir do particular para o geral. Usa casos muito persuasivos mas não sabemos se suficientemente significativos, deixando-nos com a dúvida de se pretende apresentar uma verdadeira indução científica ou é só uma hipérbole literária, e se as soluções propostas seriam válidas em qualquer país.
Finalmente, chama também a atenção que a preocupação com a sobrepopulação muito presente em outros autores [BAKER] [BEST] [BRUNDTLAND] [MALTHUS] [MEADOWS] não esteja presente no discurso de Shiva.
REFERÊNCIAS USADAS
[AGENDA21] Agenda 21. UN Rio de Janeiro Conference, Brazil, 1992.
[BAKER] Sustainable development. Susan Baker. Routledge introductions to environment series. ISBN10: 0-415-28210-1 (Great Britain) 1995.
[BEST] Steve Best: Ecological Crisis and Veganism, IARC 2013 Luxembourg. https://www.youtube.com/watch?v=mkvss2bY5HA
[BRUNDTLAND] Our Common Future. The report of the WCED. Oxford University Press. ISBN0-19-282080 (Great Britain) 1987.
[HOPWOOD] Sustainable Development: Mapping Different Perspectives. Hopwood, Mellor e O'Brien.
Sustainable Development (2005) 13, 38-52.
[MALTHUS] An essay on the principle of population. T.R. Malthus. Oxford World's Classics reprint: 1798.
[MARQUES] Alterações climáticas: a crise que não sabemos pensar 4 - As alterações climáticas e o enigma do nosso futuro comum. Viriato Soromenho Marques. 2012 https://vimeo.com/43423538
[MEADOWS] The Limits to Growth. Donella H. Meadows, Gary. Meadows, Jorgen Randers, and William W. Behrens III. Universe Books. ISBN 0-87663-165-0 (USA) 1972.
[SHIVA] Vandana Shiva : Sydney Peace Prize Talk. 2010 https://vimeo.com/17376439
[SHIVABOOK] Making Peace with the Earth: eyond Resource, Land & Food Wars. Spinifex. ISBN: 81-88965-75-8 (India) 2012.
[WIKIPEDIA] Vandana Shiva na Wikipédia http://en.wikipedia.org/wiki/Vandana_Shiva
[ZIDANSEK] Sustainable development and hapiness in nations. Alexander Zidansek. Energy 32 (2007) 891 - 897.
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